Traduzir o caos por Érico Assis

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Quando eu penso em A ESTRANHA MORTE DE ALEX RAYMOND, a primeira coisa que eu penso é em um contraste. A oposição entre simplicidade e caos.

No quadrinho, Dave Sim quis nos contar sua teoria sobre a morte de Raymond (1909-1956), um dos gigantes das tiras de jornal. Flash Gordon, Agente X-9, Rip Kirby. Como indicam o ano de nascimento e falecimento, ele morreu cedo. Foi um acidente de carro.

Mas foi  um acidente?

Para chegar na teoria, Sim nos conta a história de Raymond e de colegas de Raymond (Hal Foster, Milton Caniff, Stan Drake) e do entorno dos quadrinhos na primeira metade do século vinte. Sim desenha igual a Raymond para entender Raymond. Sim, aliás, chegou na sua teoria porque, semi-aposentado, resolveu aprender a desenhar como os grandes mestres da HQ. E quer explicar a você como que desenhar igual a Raymond o levou a entender como Raymond morreu.

Aí começa o caos.

Sim não é historiador nem professor. Sim não é didático.Ele quer que você, leitor, entre em sintonia mental com o raciocínio dele sobre história em quadrinhos, história dos quadrinhos, técnicas de desenho, as relações íntimas e profissionais dos personagens que ele mobiliza(personagens reais e fictícios) e o que ele chama de “metafísica do desenho quadrinístico”.

Bem-vindo ao caos.

Sabe aquele meme?

Pois é.
E a simplicidade? Está nos quadrinhos de Raymond e dos colegas. Apesar do nosso guia Dave Sim ter esses olhos de quem passou a noite pregando folhas na parede com fios de novelo, A ESTRANHA MORTE é um passeio pela elegância das tiras de jornal da era de ouro, de tramas relativamente suaves e desenhos que – embora não fossem nada simples do ponto de vista técnico – prezavam a clareza realista para o leitor. Uma época inocente, alegre, de mocinhos que venciam bandidos. Simples.

Agora, jogada no caos da mente de Dave Sim. Sim não é simples.

O que une este caos e esta simplicidade é a elegância. Sim incrementou, sim, suas técnicas – especificamente para desenhar como Raymond e outros em A ESTRANHA MORTE. Mas quem já deu uma olhada em CEREBUS sabe que ele sempre foi um esteta dos quadrinhos. Seu respeito e admiração por um tipo específico de arte, e sua atenção detalhista a recursos de diagramação e letreiramento brilham no álbum. É um trabalho elegante e dedicado. Tem a obsessão de um monge medieval nos detalhes. Talvez assustasse um monge medieval.

E, de certo modo, esta elegância e esta dedicação acabam virando uma maldição, como vai entender quem ler o quadrinho e o motivo da participação do co-autor Carson Grubaugh.

Li A ESTRANHA MORTE DE ALEX RAYMOND quando o álbum saiu, em 2021. Eu havia acabado de ler CEREBUS, as 300 edições, há pouco tempo. Para manter o tema automobilístico, eu já tinha sido atropelado por Dave Sim e em, ESTRANHA MORTE, parece que ele deu ré e passou por cima do meu corpo.

Eu lembro de pensar: “Para traduzir isso aqui, ou você já é louco ou vai enlouquecer durante a tradução.” Sintonizar na mente de Sim como leitor é uma coisa que já é perigosa. Sintonizar na mente de Sim como tradutor… Cruzes.

Aí que, um belo dia, Sandro Bello da Go!!! Comics me convida para traduzir A ESTRANHA MORTE DE ALEX RAYMOND.

E é o que estou fazendo. Estou na terceira semana. Talvez eu devesse ter feito uma avaliação psiquiátrica antes para comparar com o depois.

Por enquanto, estou na fase de colocar o texto no papel, sem muitas pesquisas. Acho que termina essa fase esta semana. Estou anotando tudo que tenho que pesquisar e perguntar para entendidos de pincéis e nanquins, ou consultar nos meus livros de história das história em quadrinhos. E ler GLAMOURPUSS, o outro trabalho do Sim. E entender como a Margaret Mitchell, autora de E O VENTO LEVOU… se encaixa nessa trama. E achar as Annotations que o Sim escreveu durante a publicação original. E…

Estou com medo de ser tragado pela “metafísica do desenho quadrinístico”. Mesmo que eu nem mexa com nanquim. Veremos.

Érico Assis
agosto/2024

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