“O hiato entre o impresso e o imaginário”: resgatando reflexões de Will Eisner sobre a velocidade das informações

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Um amigo meu, fanático por esportes, me contou recentemente que não gosta mais de apenas assistir a um jogo pela TV. Ele gosta do pacote completo: assistir, claro, mas também comentar com os amigos em tempo real (e tem gente que reclama dos grupos de WhatsApp!), ver os memes que vão surgindo durante a partida e até conferir o replay de lances que não viu direito ou que não foram reprisados na transmissão.

Outro amigo meu, fanático por séries antigas, compartilhou que é comum ele acelerar trechos lentos de séries ou filmes de décadas atrás. Além disso, também adquiriu o hábito curioso de, de quando em quando, simplesmente não terminar. Vê três episódios de uma série e parte para outra, mesmo que esteja gostando. Ou, pior: sequer termina o episódio da série – mesmo que tenha apenas 40 minutos. Assisti um bocado, pausa, vê mais um pouco, vai tomar um banho, assiste, pega o celular…

Duvido que estes dois casos sejam isolados. Há livros e livros a respeito (alguém aí mencionou “A Geração Ansiosa”, de Jonathan Haidt?) e, para minha tristeza, noto alguns traços dessa inquietude em mim.

Essas reflexões me vieram à mente quando estava escrevendo minha coluna da semana passada, sobre o incrível norte-americano Will Eisner (1917-2005). Gosto muito dos quadrinhos dele, mas também das reflexões dele sobre quadrinhos. E fui recuperar trechos de livros e entrevistas dele, quando me deparei com um raciocínio dele sobre o papel dos quadrinhos diante deste novo universo de velocidade constante e incessante de informações. E apesar de ser uma reflexão de quase três décadas atrás (!), em uma entrevista concedida para mim em 1997, acho que as reflexões permanecem atuais. Separei alguns parágrafos:

“É um mundo muito excitante hoje, que se move mais rápido atualmente do que em toda a sua história. Há um fluxo tremendo de informações e ideias sendo despejado sobre as pessoas.

O tempo que nós temos para absorver essas ideias está se tornando cada vez menor. Nosso tempo consciente, em que estamos acordados, continua o mesmo, mas a quantidade de informação está crescendo. 

Isso já é uma realidade. Acho que estamos entrando em um tempo em que vamos aprender a viver com as novas tecnologias, que crescem mais rápido do que a nossa mente pode acompanhar.” 

Noto alguns pontos aqui. O primeiro é um otimismo – invejável, na minha opinião. Mas o cenário que ele descreve, 28 anos atrás, ainda é o que vemos hoje. É informação demais para um dia de apenas 24 horas, e continuaria sendo informação demais mesmo que o dia tivesse 365 horas. A diferença é como ele encara isso: Eisner acreditava que aprenderíamos a lidar com tamanho fluxo de informação. Quem pensa assim como ele hoje, em meio ao hiperbólico crescimento da inteligência artificial e ao criminoso uso de fake news, com ou sem o uso de IA?

Talvez Will Eisner esteja certo e estejamos no meio deste processo de aprendizagem. Pode ser que daqui a algumas décadas esse fluxo obsceno de informações nos incomode menos, e talvez possamos lidar melhor com tanta notícia, opinião, vídeos de gatinhos e memes aleatórios chegando ao mesmo tempo. 

Em outro trecho da entrevista, Eisner diz: 

“Os quadrinhos ocupam um lugar muito interessante no mundo da comunicação. Eles preenchem um hiato entre o impresso e o imaginário.

Nós vamos agora para o que eu chamo de uma era visual, em que as informações são transmitidas pelas imagens, principalmente porque a transmissão das informações não pode mais depender unicamente das palavras.

Os quadrinhos são uma nova dimensão que une o texto à imagem. Esses elementos estarão presentes na era eletrônica e na dos computadores. A mídia impressa irá sobreviver, mas em grande competição com a eletrônica. E a importância dos quadrinhos enquanto mídia está crescendo.

Quando digo quadrinhos, devo enfatizar que estou me referindo a uma sequência de imagens para contar uma história.”

Achei incrível este raciocínio: o hiato entre o impresso e o imaginário. Eisner disse isso em 1997, antes que cada um de nós pudesse acessar a internet 24 horas por dia diretamente em seu celular, sem sair da cama. Hoje, talvez ele dissesse o hiato entre o visual e o imaginário, ou algo ainda mais preciso. Eu olho para a Marisa Maiô e vejo este hiato sendo preenchido: a imaginação, a inteligência e o humor de Raony Philips, criador da personagem, sendo visualmente muito bem transmitidos. A IA pode ter este lado bom.

Olhando o exemplo da Marisa Maiô, penso que os quadrinhos podem preencher o hiato entre o visual e o imaginário, mas não só. Todas as mídias visuais estão cada vez mais crescendo neste caminho, mesmo antes da IA surgir como a estamos vendo. 

Tentando manter o otimismo de Will Eisner, eu poderia dizer que, se bem usado, este fluxo ainda maior de informação, e os recursos que ainda estamos descobrindo da IA podem ajudar cada vez mais os artistas, não importa de que meio. “Acho que estamos entrando em um tempo em que vamos aprender a viver com as novas tecnologias”, ele disse. Os quadrinhos, e qualquer outra mídia, podem descrever este avanço, refletir sobre ele e, claro, evoluir com ele.

O mundo, e os quadrinhos, estão se transformando a uma velocidade absurda. A IA e o fluxo de informações são, acredito, dois componentes desta mudança, e a ansiedade amplificada, uma de suas consequências.

Entretanto, nem todas as consequências são necessariamente ruins. Por isso, vou encerar com uma frase que o Eisner disse nesta mesma entrevista, exatamente quando refletia sobre o aumento no fluxo de informações:

“Mas é um mundo que está se tornando cada vez melhor. Estou feliz de estar nele.”

Pedro Cirne é formado em jornalismo, desenhos e histórias em quadrinhos. É autor do romance “Venha me ver enquanto estou viva” e da graphic novel “Púrpura”, ilustrada por 17 artistas dos 8 países que falam português.

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